Série sobre seqüelas da violência doméstica
Texto de Geni Pedreira
É um saco
ser julgada por ser pessimista, por expor dramas, então se você é desses que se
acha tão fraco que a tristeza alheia tem o poder de cortar a energia positiva
que está construindo seu fabuloso futuro, PARE
POR AQUI, eu represento um pedaço daquele mundo que você não quer ver para
poder negar a existência de algo que na verdade, definir como bem e mal é no
mínimo simplista.
Sobre
minha cabeça perambula a egrégora dos que sentem uma imensa e impotente dor na alma...
Nem eu desejo que ninguém faça parte dela.
A minha
não-carreira de escritora, tem se baseado para mim, em encontrar palavras que consigam
me mostrar por dentro, e não consigo... Porque se eu conseguisse seria um
pedido de socorro tão genuíno, que constatar que vou ser ignorada seria uma
facada final, seria como ficar nua e absolutamente ninguém olhar.
Mas te
informo que sim, com tudo que eu vou falar, eu acho o meu passado, presente e
futuro incertos, mas fabulosos, mas tenho certeza de que o meu velório vai ser
para poucas pessoas como o da minha mãe, não que eu me importe com isso, mas o
fato é que vai faltar uma pessoa que eu amo muito e isso me atormenta,
diariamente.
Outro dia
eu estava andando pelo calçadão do Centro de Niterói, achei a Amaral Peixoto
decadente, estava suja e andando por ali eu senti algo, que na verdade eu
comecei a sentir com 22 anos de idade.
Senti
pavor, de um dia estar por ali abandonada, sem teto, sem parentes e sem amigos,
é meio difícil de explicar por que comecei a me sentir assim, mas vou tentar.
Para me
livrar da violência doméstica eu trabalhei por muito tempo em lugares que no
meu retorno para casa eu tinha essa sensação; consegui começar a me levantar só
quatro anos depois desse início, aos 26 anos. Mesmo assim eu tinha uma sensação
de impotência, que me fazia acreditar que eu trabalhava para me livrar de uma
coisa, que eu tinha certeza de que ao passar dos anos, agiria em mim como um
câncer. Aquela que acreditava em princesinhas saiu do trono e teve que se
esforçar para fugir de bêbados nos sábados à tarde, onde dava aulas perto da Praça
Tiradentes; paralelo ao meus sofrimento eu via crianças se prostituirem à luz
do dia e mesmo assim, por estar mergulhada nos próprios dramas, nada,
absolutamente nada pude fazer por elas.
Eu tinha
certeza absoluta de que isso nunca passaria. Quando eu consegui finalmente me
estabilizar, fazer tudo escondido, alugar e montar apartamento (isso foi só aos
30 anos), subi a ladeira da casa à qual eu estava prestes a sair carregando
apenas meus filhos, com o pensamento apavorante de que eu não conseguiria
manter minha vida material para sempre, carregando com esta responsabilidade
todas as dores e principalmente conseqüências que os meus filhos sofreram. Eu
tenho vontade de invadir delegacias gritando feito louca, para que considerem
prioridade, tirar do lar as crianças cujos pais vivem em estado de violência.
A
violência corta todos os galhos da árvore de uma vida e deixa apenas dois, como
se só restasse duas esquinas para dobrar: eu tinha a certeza absoluta de
que se eu me virasse à esquerda ou à direita, eu não encontraria em nenhuma
delas paz ou prosperidade... Senti como nunca houvesse sincronismo entre eu
e o mundo por que a minha decisão foi no dia da queda das Torres Gêmeas.
Violência doméstica é isso, um avião que derruba sua identidade, suas forças
complementares, seu yin e yang se fundem em uma energia confusa e avassaladora.
Eu criei
uma fantasia: quando as pessoas que te rodeiam não te preparam para o que você
pode passar na vida, a natureza mostra que ela é enorme, magnífica e assume o
papel que era para ser do humano, nos jogando em experiências que te alertam e
te preparam:
Eu amava
montar castelos na beira do mar, bem perto da água, de tanto a onda vir e
derrubar eu fui criando um método para que ele ficasse de pé, cavava um
poço enorme ao redor dos castelos e cheguei a um ponto que qualquer tentativa
da onda o destruir, ela fracassava, meu castelo permanecia de pé
Eu estou
escrevendo pela primeira vez na vida, como se eu fosse a única testemunha da
minha dor, pra conseguir isso, eu preciso ter a segurança de mudar o meu nome e
não dar às pessoas superficiais, a glória rasa de saber quem eu sou: Quem é
esta que sofre tanto? Quero conhecer! Saber das desgraças dela pode comprovar
que a minha realidade é muito feliz... Feliz?
O grande
risco de ter sido um dia vítima é o egoísmo, a falsa crença de que o cúmulo da
dor te fez tão empático e merecedor de misericórdia que você começa a acreditar
piamente que as pessoas precisam da benção de te ouvir, e dentro disso, você
não ouve as elas... Tudo começa a parecer frescura, dentro disso você não se
percebe tendo permitido que a violência te derrote a um ponto que não resta
sequer sensibilidade para a dor DO OUTRO.
Dava para
eu escrever um livro, mas a minha vida e a minha inspiração é tão retalhada
quanto o meu coração e a dor é tão forte que quando eu a chamo por um tempo
para segurar as minhas mãos e escrever, preciso descansar e fingir que nada
aconteceu, que nada ainda acontece, é como se você tivesse que apagar todas as
luzes, por que qualquer lanterna que você ligue, só vai avistar afogados.
A lanterna dos Afogados:
Um dia,
combinamos de ir a Rio Bonito e foi mais um dia que as crianças estavam
arrumadinhas
à espera de um pai que não veio, ao menos não veio na hora certa ou sóbrio.
Planejamos
ir cedo por que o carro estava com as lanternas quebradas, ele chegou bêbado e
queria pegar a estrada desta forma, eu insisti em não ir, as crianças acordaram
e sentaram na sala enquanto ouviam os berros dele comigo no quarto.
- Eu sei
bater sem deixar marcas, vamos embora.
Ele foi
na área da casa, pegou uma toalha, molhou, passou pelos seus filhos com a
toalha pingando e se trancou no quarto comigo, ele tacava a toalha com força e
a cobria com seu punho pra dar socos sem deixar marcas, nessa altura a minha
filha já estava grudada na porta do quarto gritando:
- Vamos
que ele para mamãe.
Fui não
por que não agüentava mais apanhar, eu não agüentava mais ouvir a sua filha
chorar.
Ao chegar
à estrada ele constatou que não teria como prosseguir, retornou e teve um momento
em que ele caiu em si e nos levou pra um restaurante que eu não tinha clima pra
ir. Ele fez um desses fotógrafos de restaurante tirar uma foto do momento feliz,
lógico que jamais fui buscar ninguém se lembra do gosto da comida, mas sinto
todos os dias da minha vida, gosto de sangue na boca.
Passaram-se
17 anos dessa e de muitas outras surras. Minha filha que assistia ao vivo teve seqüelas
emocionais, meu filho era mais novo, estava sempre dormindo e não se lembra de
nada. Aos 15 anos ele foi morar com o seu pai, a sua avó paterna... A mãe do
agressor, para limpar a barra do seu filho, jurou para o meu filho que eu nunca
sofri violência doméstica, o convenceu de que eu sou desequilibrada e me trancava
me batia ate ficar roxa...
Ele tem
23 anos, já trabalha no Ministério Público estagiando em vara de família, eu
perdi sua entrega do livro aos seus sete anos de idade, eu estava fazendo corpo
delito e foi a primeira vez que ela começou a dizer para ele que eu não estava
ali por que não o amava.
Meu filho
não fala comigo há sete anos, vou perder a formatura dele, casamento, todas as
conquistas... Ninguém vai romper o silêncio contando para ele a verdade,
não temo a morte depois do seu abraço, mas sinto que morro a cada dia em
que me desespero com a ideia de que aquele que eu fiz chegar, não
acredite em mim e se ausente até na minha partida.
...
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