Artista


Às vezes tento fugir. Corro o mais longe que posso. Escancaro a porta de casa, sem me importar se as sandálias calçam meus pés ou se alguém está me esperando para entregar um corpo que eu não mais reconheço como sendo meu. Só tenho vontade de tingir a cidade cinzenta com meu coração de artista. Eu vibro numa frequência que ninguém consegue ver. Acesso alguns lugares invisíveis e lá eu descubro que mentiram para mim, desde que eu era pequena. Não é possível ser feliz nesse mundo. Cuida da casa, da família. Não pode estudar, mas ele sim. Ele vai crescer, ser muito importante. Eu serei sua sombra. Cresci ouvindo do marido da minha mãe que ela era linda, mas louca e má, quando não queria dormir com ele. O que me define? Às vezes tento fugir, corro o mais longe que posso. Tenho corrido por vinte anos e não sei mais onde estou. Não consigo voltar; não quero. O que me define? Corro sem sair do lugar, perdida numa sacada; vou até onde meus olhos alcançam. Um horizonte cor de chumbo. Olho pra baixo, fico tentada. E se eu tingir esse chão de vermelho rosé? Alguém vai limpar, ou vão fazer uma oração por mim? Alguém está me chamando lá embaixo e eu não quero responder. Quero ficar aqui. Invisível. Mas também quero ser notada. Tomo uma decisão. O que me define? Disparo pela sala, escancaro a porta de casa e vou. Acelero até a Praça Central e vejo uma moça pintando. Uma artista. Ela está vestindo uma saia longa verde, tem cabelos castanhos escuros e me captura com seu olhar doce. Olho para mim e vejo como estou bonita. Quero um desenho. Ela sorri com a proposta. : - Qual é o seu nome? - ela pergunta. - Nunca me disseram - eu respondo, sem jeito. - mas gostaria que meu nome fosse Artista; pode ser? - arrisquei. A moça me olha rindo e disse: - Sim, Artista. Muito prazer, eu sou a Pintora. Sento e ela começa a capturar meu rosto e minha alma, tudo num pedaço de papel com cor de café. Levanto, satisfeita e me admiro com aquela potência. Sou eu. Potência. A Pintora levanta, espreguiça. Posso te dar um abraço? Pode; eu gostaria disso. Nossas almas se encostam, uma na outra e não haveria maneira de tudo voltar a ser como era. Descalça, vou em direção à entrada da cidade. Não corro, caminho; meu olhar cor de amêndoa sorri, de leve. Sou um lar ambulante. Daquele dia em diante passei a me habitar e isso me basta.

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Desenho: Olivia Rodrigues
Texto: André de Mendonça

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