Quando Meu Tio Se Foi

Nós nunca entenderemos a morte. É uma caixa que ninguém deseja abrir, uma água que já vimos alguém beber, mas olhamos de longe. E fede.

Quando meu tio se foi, as luzes da casa da minha avó se apagaram e os raios do sol dificilmente invadiam o interior do lar. Lembro de querer ficar ali, mas também de querer sair correndo pro mais longe o mais rápido que eu pudesse, mesmo depois das 7 horas de voo.

Ao chegarmos na casa, apesar da surpresa de não nos verem havia anos, não houve gritos de alegria, abraços com braços esfregando nervosamente as costas. Parecia não haver pessoas, apenas almas sofridas lutando para permanecerem de pé e nos receberem da melhor forma que podiam. Seus olhares eram em nossa direção, mas não eram para nós. Eram vazios e nos atravessavam a alma.

Minha avó estava dopada de remédios, mas ao ver minha mãe, levantou os braços para abraçá-la, como se acabasse de lembrar que havia perdido um filho e mamãe estivesse ali para confortá-la. Suas primeiras palavras me diziam que eu estava errada, pois sua voz denunciava uma mãe que já havia chorado muito. Estava rouca. Só conseguia falar “Eu perdi meu filho! Eu perdi o meu filho!” sem parar.

Ao entrar na casa escura, abraços tortos e frouxos, uns mais firmes, talvez um grito de socorro, mas que nós também buscávamos. O que dizer? Como confortar?

Meu avó, que antes sempre sorridente, que era o primeiro a nos recepcionar, olhar nos meus olhos e me chamar “Minha portuguesinha do vô!”, hoje sofria. Estava inconsolado. Inconsolável. Sentado, olhava para baixo e chorava fazendo que não com a cabeça. “Meu filho!” Suas lágrimas faziam uma pequena poça de grande tristeza no chão. Vô, se eu pudesse me fazer maior pra te pegar no colo, te embalar e te fazer dormir ali, como tantas vezes o senhor fez comigo, eu juro que faria!

O lugar era choro e silêncio. Quando algum assunto se iniciava, era difícil ter um fim, pois as frases não eram terminadas. Ninguém parecia se importar com isso. Talvez porque ninguém estava realmente atentando para o que falavam ou ouviam. Nessas horas nossa mente já grita coisas demais que tapam nossa boca, devido ao excesso.

Algo que notei é que as pessoas ainda falavam do meu tio no presente.
“O Joran ama essa música!”
“O papai sempre fala que eu sou muito preocupada com as coisas.”
“O papai vai lá em casa, quando a mamãe não pode. Ele sempre faz isso e prepara um pratão de comida.”

Isso as confortava, fazendo parecer que ele estava mais próximo que o real.
Mas o que cortava o coração eram os falsos consolo.
“O papai vai entrar por essa porta a qualquer momento.”

Ou talvez as falsas esperanças…
“Toda vez que toca o telefone, eu corro achando que é ele.”

O clima não mudou nas duas semanas que permanecemos lá. Na tentativa (nessas ocasiões, sempre falhas) de amenizar as coisas, eu me dispunha a ajudar. Certo dia minha prima estava com a vassoura na mão, e eu perguntei “Posso?”, ao que ela me responde “Não. Estamos só… é… tirando o cheiro do papai do quarto.” A frase foi difícil de ser ouvida, mas não mais do que pra ser dita. Prima, eu te senti tão leve. Me desculpa não ter podido te abraçar e não te permitir flutuar.

A partida do meu tio não tornou ninguém mais forte. Não fez das minhas primas mais independentes. Não fez meus avós mais preparados para incertezas da vida, mesmo com os seus 70 e poucos anos. O tempo não ajuda muita coisa, ao contrário do que tentam te enfiar, quando você perde um ente querido. Eu, ser de memória tão fraca, ainda vejo o sorriso de olhos fechados do meu tio querido. E todos sempre vão lembrar. A dor ainda é fresca. Não toca, que arde.

As pessoas têm medo de serem esquecidas quando morrerem, mas a própria morte se encarrega de que isso não aconteça. Ela é um selo de que você viveu do modo como viveu e que seu tempo já não será mais contado aqui. Ponto final.

Te desejo uma vida longa. Não só em tempo vivido, como na mente de quem te conhece.

Atenciosamente,
Tamar

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Comentários

  1. Esse texto é maravilhoso! Muito forte e doce!

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    1. Que bom que gostou! Ele foi um dos "vômitos" que a gente dá hahaha.

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  2. Tamar Linda...
    Estou amando os teus textos...
    Agora sim tu faz algo que é a tua cara e nós só temos a agradecer por nos prestigiar com belas leituras!

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    1. Lê, é uma felicidade MUITO grande ler isso. Muito obrigada! ❤

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